quinta-feira, 26 de fevereiro de 2009

Palimpsestos


Às vezes sou ingénua...Quase sempre, na verdade!
É o que se pode esperar de uma pessoa que acredita em milagres.
Que vê anjos em tudo e, o pior: em todos...
Às vezes, tanta ingenuidade, me mete em encrencas. Me faz doar mais do que devia, ou poderia. Doar meu tempo, meu coração, minha energia, meu sangue, minha vida!
Confesso que não sei ser pela metade.
Me pareço muito com uma gata que tínhamos, a Marie. Ela se envolvia 100% em tudo. Desde os carinhos às maiores confusões.
Ela viveu muito. E se isso não for milagre nada mais será! Pois perdi a conta do número de vezes em que ela apareceu em casa toda estropiada.
Pele e osso seria elogio. Era só osso!
A carne, os pelos... só Deus sabe em que cerca, garras ou dentes teriam ficado.
Testemunhei sua cura por incontáveis vezes. Limpava seus ferimentos, fazia emplastos, lhe dava leite morno e carinho. Acompanhava com assombro, a incrível capacidade da natureza em se autorrestaurar.
A carne se formando, cada dia mais densa, sob a camada do novo e sedoso pelo novo.
Os ligamentos se reconstituindo, até ela conseguir andar vagarosamente e, num instante seguinte, já estar pronta para pulos e saltos formidáveis.
É verdade que nunca consegui impedir que algumas cicatrizes ficassem.
Não compreendia que eram as marcas das batalhas, e que, no futuro, teria as minhas próprias. Medalhas de honra ao mérito, condecorações! Ela tinha várias.
Uma verdadeira veterana de guerra!
Porém, me espantava com que rapidez tornava-se macia de novo, agradável ao toque.
E era tão gostosa, tal qual o gatinho-bebê, que um dia trouxe para casa na mochila da Universidade.
Sempre a terei como exemplo, de que nada serve tentar nos preservar das batalhas. Melhor entrar com tudo, mergulhar de cabeça. Sem medo de perder o que quer que seja. Inclusive a cabeça!
Como em um palimpsesto, ou na restauração de um móvel, o artista vai trabalhando a peça. Às vezes se faz necessário o uso de uma espátula com um martelo para retirar a camada mais grossa de massa, depois lixa, passa um fundo nivelador, lixa de novo...
Processo lento. Várias fases.
Ser humano também é assim. Mas o resultado compensa.
Prefiro o restaurado ao novo.
E que palavra complexa e bela, Restaurar (Dic. Houais): "obter novamente a posse ou o domínio de alguma coisa perdida". É engraçado observar que em meio a tanta pressão para que se adquiram novos produtos, também se fale tanto em restaurar. Restaurar a dignidade, a autoestima, o valor do ser humano...
Ela também aparece como sinônimo de "Recuperar", a saúde, a alegria, as posses, o esplendor...
É quase um voltar ao estado primitivo, original. Mas vai muito além disso.
Um mural de palimpsesto jamais será um tablado de madeira crua e sem vida, ou um simples pergaminho em branco. Ali estão as marcas de artistas, viajantes, curiosos, crianças arteiras...todos que trazem em si o desejo de se autoafirmarem no mundo.
Aí, vem alguém e tenta jogar uma tinta por cima e fazer a seu modo, depois outro, e mais outro e no final, temos um Mundo, com todas as suas cores, personalidades, individualidades, num único ser, ou objeto.
Como um móvel restaurado, uma casa, ou o próprio ser-humano...ele nunca será totalmente livre das energias que o imantaram.
Melhor assim!
E ganhará o toque de um outro alguém, que não sabe bem por que se encantou com tal objeto. E de tanto amá-lo e carinhá-lo no seu processo de reforma, lhe trará um novo frescor. Sem que para isso, ele deixe suas histórias, suas marcas ...suas cicatrizes.
E quem poderá dizer que não é novo? Um novo velho! Um novo cheio de histórias pra contar. Ou melhor, para se descobrir.
Há quem não goste de nada que já foi 'usado'. Que já pertenceu a outra pessoa.
Esquecem-se de que todos nós já somos de segunda mão, terceira, quarta... Não há nada novo sob o sol. Trazemos vestígios e marcas de relacionamentos antigos, dos pais, dos avós, das cidades e casas onde vivemos...
E, esquecemos que, felizmente, também estamos sendo restaurados o tempo todo.
(É que às vezes o Marceneiro exagera um pouquinho e nos deixa só nos ossos. Lixa tanto, que sobra bem pouco pra contar história...ou sobra muito? )
Não sei! Sei que dos ossos, a Marie sempre se refazia. Macia, faceira e a cada nova batalha mais charmosa.
Quem a conheceu sabe que não exagero. E sabe da falta que ela faz!

quarta-feira, 11 de fevereiro de 2009

Pedras







Amo as pedras.
Suas texturas....
Tecidos tão antigos.
Tramas tão fechadas,
confeccionadas por milhares de mãos: verões, invernos, ventos, chuvas, granizos, luares...
Algumas são rústicas, lascadas, verdadeiras armas.
outras, porém, macias, lisas, redondas...que se acomodam perfeitamente nas palmas das mãos, sobre os olhos, entre os seios no chakra do coração!


Pedras verdes e rosas abrem o canal
para o amor desimpedido, incondicional.
Quebranta a dureza da alma.
O antídoto: pedra para curar um coração de pedra!


Pedras quentes sob ou sobre as costas,
terapia tão antiga quanto a humanidade que,
inconscientemente, praticava todos os dias no final da tarde
para despedir-me do sol e dar boas vindas à lua.
Esparramada sobre a imensa pedra cujo nome
revela seu formato: Pedra da Cebola.



Enquanto a Gabi cantarolava, correndo:
"Pedra da cebola, ahh que parque bom!...",
uma canção só nossa como tantas outras.



Não sei se pela sua voz de serenidade
ou pelo acolhimento das velhas pedras,
quentes como colo de avó,
expostas à quentura da vida/do dia.
Acredito que ambos.
Saía de lá refeita...
com menos pedras pelo caminho...

Há quem não goste das pedras.
Há quem delas reclame e se desvie.
Mas há quem faz delas sua cura,
seu caminho favorito.
Este é o meu caso.